Hoje quero falar de política | Germana Accioly

 


Passei mais de uma semana para entender o meu próprio silêncio. Aliás, é mais do que silêncio. É silenciamento, incapacidade de trazer para o “papel” os pensamentos. A cabeça fervilha, um vulcão. Mas na ponta dos dedos, o vazio. 

Como cheguei até aqui? 

Uma mulher de 53 anos, jornalista, ativista, militante, fazedora de políticas públicas. 

A missão: escrever um texto para a Revista Laudelinas sobre a Escola da Democracia, meu mais recente projeto, que busca promover a literacia política e fortalecer a participação da juventude na política no Recife, minha terra natal. 

Deveria ser uma tarefa simples. Sou cronista, quase compulsoriamente, e trabalho na política há mais de 20 anos. Mas emperrei diante do computador.  Falar de política é mais difícil que falar do meu universo interno, porque me move em um lugar coletivo. Falar de política é sentar na cadeira do pertencimento e do lugar estrutural da violência de gênero. 

Como então começar esse texto? 

Lembrei de quando, pela primeira vez, ouvi que sou ativista dos direitos humanos. Um dia, enquanto elaborava meu Currículo e precisava também enviar uma minibio, uma amiga me disse: escreva que você é ativista dos direitos humanos. Estranhei a alcunha. Lembro de olhar para ela meio assustada e dizer: ativista, eu? Achava que o que eu fazia era sobreviver. Escrevi mesmo assim, meio desconfiada, na tal biografia abreviada a expressão. 

O que fazer com isso?

Fui uma criança que cresceu numa casa onde política se fala na mesa do jantar. Mais que isso: uma casa que abrigava debates, pessoas, artistas. Cresci fazendo campanhas, representando meus colegas no colégio. E o que tudo isso tem a ver com o tal silenciamento do início do texto? A pergunta, sem resposta, por uma semana me perseguiu.

O tempo, esse irremediável parceiro, foi me constituindo. Não se consegue tapar o sol com a peneira. Busquei em mim que pontos cruciais viraram a chave da ativista.

Lembrei que um dia, almoçando no centro do Recife, vi uma frase estampada na parede, no muro lateral da Igreja de São Pedro. Ela bateu em mim tão forte que me levantei para fazer a foto. O celular travou e tinha um travo na minha alma também. Quando finalmente fiz o click, um personagem a mais apareceu no cenário, olhou na direção da câmera. Um homem sem rosto, apagado pela sombra do boné em pleno sol a pino. “Homens têm medo de mulheres que não tem medo”. Instante registrado, peito apressado, quase como se eu tivesse descoberto a roda. 

O que move a minha indignação?  

Estudo conduzido em 2019 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil (PNUD) coloca o país em 9º lugar quanto à representação política das mulheres, entre 11 países da América Latina, ficando à frente somente do Haiti. 

A resposta foi chegando aos poucos. A ficha foi caindo a cada texto que mandei para a lixeira. O ativismo nasceu e se instalou das artérias, a conta gotas. É filtro quando ando nas ruas, é lente de aumento enquanto me movo politicamente. Meus textos de cronista e de jornalista são permeados pelas minhas convicções. 

O silenciamento, esse recurso ancestral, calou mulheres gerações a fio. Trago um pouco desse apagamento. Trago a paixão pelo coletivo, igualmente. E, na encruzilhada dos meus sentires, a realidade de gênero na política sempre embarga a garganta. 

Mais de 737 cidades brasileiras não têm sequer uma vereadora, o que equivale a 18% das cadeiras legislativas municipais do Brasil. Embora 51% da população brasileira seja feminina, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apenas 13% das cidades (732) serão administradas por mulheres pelos próximos quatro anos.

As mulheres que se candidataram a vereadora recebem, em média, 42% menos recursos do que homens para fazer campanha, dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

As candidaturas femininas ao Legislativo Municipal tiveram, em média, R$ 9.575,00 para buscar votos, ante R$ 16.789,00 destinados aos homens que concorreram às mesmas vagas.

Não acredito em democracia sem justiça de gênero. Desde 1710 existe a Câmara Municipal do Recife. A primeira vereadora foi empossada em 1947, Julia Santiago. Até hoje, apenas 24 mulheres foram eleitas. Dessas, apenas 4 se autodeclararam negras. Se um dia juntássemos todas elas em uma única sessão legislativa, não teríamos completado o número de cadeiras, que hoje é de 37 parlamentares. Somos mais da metade da população, mas não votamos em nós mesmas. A vulnerabilidade nos impede de enxergar as parceiras como capazes, de nos apropriar da política tal como está estruturada. 

Um exemplo muito básico, quase simbólico, é a manchete que colhi no site do Senado: Bancada Feminina do Senado conquista direito a banheiro feminino no Plenário (Bancada Feminina do Senado conquista direito a banheiro feminino no Plenário — Portal Institucional do Senado Federal). A notícia é de 2016 (!) e eu fico abismada: 

Desde quando um banheiro feminino seria uma conquista

O Congresso Nacional, esse complexo majestoso, foi projetado sem considerar mulheres parlamentares. E o que a arquitetura modernista nos conta sobre inclusão política? A resposta pode estar nos números abaixo: 

Apesar do aumento da presença de deputadas nas últimas eleições brasileiras, os 17,7% ainda apontam uma sub-representação feminina no Parlamento em relação aos dados globais. A participação das mulheres nos parlamentos é de 26,4%, em média, segundo a União Interparlamentar (UIP), organização global que reúne 193 países. Se fosse seguir esse padrão, a bancada feminina na Câmara Federal e no Senado seria de 135 deputadas. Hoje, temos 91 parlamentares. Ranking da mesma instituição coloca o Brasil no 146° lugar na participação de mulheres entre os 193 países analisados.

Meu corpo quase reage a cada vez que me deparo com esses dados, nítidas ferramentas de invisibilidade. A fagulha que me incendeia me leva a contar histórias e colocar a minha vivência como mulher na centralidade, uma permanente sensação de que estamos, por mais que avancemos, andando sempre um passo atrás, ou muitos. 

É nesse cenário de desigualdade, extrema vulnerabilidade e muita inquietação  que surge no Recife a Escola da Democracia. Uma organização que trata de política pensada e gerida exclusivamente por mulheres. Eu e mais duas pernambucanas nos juntamos por um ideal comum: trazer a democracia para a rotina das pessoas, estimular que principalmente a juventude compreenda seu papel coletivo. 

A Escola da Democracia é feminista, antirracista e recifense. Queremos que a democracia seja fio de água que se junta à correnteza e vai ganhando forma onde passa. Que seja construída na parada do ônibus na Av. Conde da Boa Vista; que vibre no batuque do maracatu que ecoa dos becos de Água Fria, nas conversas de calçada em Casa Amarela, no peixe frito da sexta-feira no Ibura. 

Democracia como aprendizado diário, na feira, na praia, na sala de aula, no grupo de WhatsApp da comunidade, na resistência dos que lotam a areia de Boa Viagem mesmo com os tubarões à espreita.

Essa crônica não é escrita somente por mim. Vivi anos, bebi na fonte de histórias, ouvi minhas antepassadas. Nas cirandas de mulheres me reconheci, nos caminhos que abrimos temos uma semente plantada. Uso palavras simples para me fazer entender, porque mais do que a vida que se move, é preciso transitar estruturas. 

No trajeto, reconheço melhor quem sou: uma mulher de 53 anos, jornalista, ativista, militante, fazedora de políticas públicas.


Download da revista: clica aqui



Germana Accioly, diretora de relações estratégicas e comunicação da Escola da Democracia, é jornalista, especialista em Política e Representação Parlamentar pelo CEFOR em Brasília e em Política e Cultura pela Agecif, Paris. É autora do Relatório dos Mandatos Ativistas no Brasil (2023).  É cronista, publicou textos em diversas revistas e sites e lançou seu primeiro livro, “Não é Sobre Você”, em 2021. Participa da coletânea “Crônica Popular Brasileira”, ambos pela editora Mirada.