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Fatima Hassouna, fotojornalista palestina |
No céu que um dia estrelas acendia, agora
cadentes são somente as bombas, em seus voos certeiros. Não há constelações (ou
elas não mais importam), só o rastro do adeus, e o silêncio da morte que as
explosões fazem gritar aos quatro cantos. Fátima não tem mais certeza do que o
amanhecer trará. Sobreviveremos? Ao anoitecer, ainda estarei aqui? E se eu
virar pó, o que será das crianças que me restaram? Ou serão elas as próximas
vítimas de uma contagem macabra, meros números em um relatório de atrocidades?
A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA)
e o Ministério da Saúde de Gaza relatam que, desde o início da escalada mais
recente, dezenas de milhares de palestinos foram mortos, com uma proporção
chocante de mulheres e crianças. Mais de 70% das vítimas são civis, e as
crianças superam o número de mortos em muitos outros conflitos globais
combinados em períodos semelhantes.
Enquanto essas palavras são escritas, a cada
minuto, mais vidas se perdem, num genocídio transmitido ao vivo e à cores, num
mundo cada vez mais distópico. Em um mundo onde a informação flui em velocidade
sem precedentes, o que se desenrola na Faixa de Gaza se apresenta como um
paradoxo doloroso demais para um dia esquecer. Décadas de tensões, conflitos,
violências e deslocamentos infringidos a um povo atingiram um novo patamar de
visibilidade, expondo ao escrutínio global a continuidade de um sofrimento humano
que parece não ter fim. A barbárie, outrora velada por narrativas manipuladas
ou pela distância, agora se manifesta em tempo real, chocando consciências e
provocando um clamor crescente por justiça e ação.
O que assistimos em Gaza não é apenas mais um
capítulo de um conflito geopolítico complexo; é um alerta estridente, uma
ferida aberta no corpo da nossa própria humanidade. É o indicador máximo da
nossa capacidade de ser desumanos, de tolerar o intolerável, de silenciar
diante da crueldade explícita. Gaza se tornou o espelho sombrio que reflete a
derrocada dos valores mais básicos da coexistência, da compaixão e da
moralidade internacional.
E, como agora todo mundo sabe, não adianta
fingir, Gaza não é a única ferida aberta no mapa-múndi da indiferença e da
ganância a todo custo. Enquanto o foco global se volta, ainda que tardiamente,
para o horror palestino, outros conflitos brutais e desumanos persistem,
teimosamente ignorados por grande parte da imprensa e da consciência coletiva.
No Sudão, uma guerra civil implacável devasta vidas, com atrocidades e
deslocamentos massivos ocorrendo longe dos holofotes, transformando regiões em
um caos humanitário. No Iêmen, anos de conflito deixaram um rastro de fome,
doenças e destruição, criando uma das piores crises humanitárias do século,
frequentemente esquecida. E no Haiti – que bem nos lembra Caetano, é “aqui” –,
uma nação já castigada por desastres naturais e instabilidade política, a
violência de gangues atingiu níveis alarmantes em 2025, mergulhando o país em
uma crise sem precedentes, com a população refém de milícias e a infraestrutura
básica, inclusive de saúde, em colapso, tudo isso com uma atenção internacional
pálida. Esses são apenas alguns exemplos. São muitos os lugares onde a vida
humana é barateada, e o silêncio do mundo é cúmplice da dor.
Mas o que acontece em Gaza, já se vislumbra como
outra coisa, algo que o mundo jurou nunca mais acontecer e esqueceu. Nós
precisamos falar desse holocausto.
Ferida aberta. A complexidade do conflito
israel-palestina tem raízes profundas na história e na política da região, com
uma obvia rota de colisão entre a autodeterminação judaica e a soberania palestina
sobre suas terras históricas. A Declaração Balfour de 1917, o Mandato Britânico
na Palestina após a Primeira Guerra Mundial, e a subsequente Resolução 181 da
Assembleia Geral da ONU em 1947, que propunha a partilha da Palestina em dois
estados – um árabe e um judeu – foram marcos. A recusa árabe à partilha e a
guerra de 1948 que se seguiu à declaração de independência de Israel resultou
na criação do Estado de Israel e no deslocamento (por expulsão ou fuga) em
massa de palestinos, evento conhecido como "Nakba" (catástrofe, em
árabe), originando uma das maiores e mais prolongadas crises de refugiados do
mundo, com mais de 400
aldeias palestinas foram destruídas ou despovoadas e suas
terras tomadas ou incorporadas pelo novo Estado que surgia.
Desde então, sucessivos conflitos, ocupações e expansões de
assentamentos israelenses em territórios palestinos têm perpetuado a tensão e o
sofrimento na região que, a partir daí nunca mais foi a mesma. Um de seus
ápices, a Guerra dos Seis Dias, um conflito militar
entre 5 e 10 de junho de 1967, envolvendo Israel de um
lado, e Egito, Jordânia e Síria de outro e que, no final das contas, fez com
que Israel quadruplicasse seu tamanho, capturando a
Península do Sinai e a Faixa de Gaza do Egito, a Cisjordânia e Jerusalém
Oriental da Jordânia, e as Colinas de Golã da Síria, áreas conhecidas
como territórios ocupados (ou disputados, dependendo da
perspectiva). Sem solução diplomática para a situação, os conflitos
continuaram. E para reaver essas terras perdidas, em 1973 vem a Guerra do Yom
Kippur, com os EUA apoiando Israel e a União Soviética armando os estados
Arabes. Apesar de um final mais favorável à Israel, muitos analistas ressaltam
que esse conflito foi essencial para alterar as dinâmicas militares, políticas
e econômicas da região, uma vez que, a capacidade dos exércitos árabes de
lançar um ataque surpresa bem-sucedido e infligir pesadas baixas no oponente
quebrou a percepção de invencibilidade israelense e restaurou o orgulho árabe.
Yom Kippur foi um catalisador direto para as negociações de paz entre
Egito e Israel. Sob a mediação dos EUA, os Acordos de Camp David foram
assinados em 1978, resultando no primeiro tratado de paz entre Israel e um país
árabe, e na devolução do Sinai ao Egito. Isso, solidificou o papel dos Estados
Unidos como o mediador e ator diplomático no conflito árabe-israelense, o que
me parece aquele “paradoxo estendido na areia”, cantado pelo Herbert Viana, já
que historicamente, os EUA têm sido o principal aliado e apoiador de Israel,
fornecendo desde sempre, bilhões em ajuda militar e econômica.
Como disse recentemente Francesca Albanese, Relatoria Especial da ONU
para os territórios palestinos ocupados, “Israel não teria feito tudo o que
fez, se não soubesse que tinha carta branca” e é sobretudo esse apoio que
garantiu a capacidade militar de Israel e a manutenção de uma superioridade
tecnológica e bélica na região. Diplomaticamente, os EUA frequentemente usaram
e seguem usando seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU para bloquear
resoluções que condenam ações israelenses ou que poderiam impor sanções, uma
obvia licença para a continuidade das políticas de ocupação e cerco,
popularmente conhecida como licença para matar.
Essa parceria estratégica, com apoio da Europa (apesar de que entre seus
países há divergências e diferentes razões para justificar as posições),
permitiu a perpetuação do conflito e o aprofundamento da crise humanitária
palestina, gerando um profundo ressentimento em grande parte do mundo árabe –
vale lembrar que o Hezbollah, no início dos anos 1980, surgiu como uma milícia
de resistência à ocupação israelense do sul do Líbano, fortemente influenciado
pela Revolução Islâmica do Irã e sua luta contra o ocidente (aliado de Israel).
Num texto tão curto, não dá para contar toda a
história, então só me resta perguntar o que a gente faz quando a Banalidade do Mal
se casa com a Apatia Global? A filósofa Hannah Arendt, em sua obra
"Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal",
explorou como atos hediondos podem ser perpetrados não por monstros sádicos,
mas por indivíduos comuns que, em sua obediência cega e falta de pensamento
crítico, normalizam o horror. Em Gaza, a cada bombardeio, a cada vida ceifada,
a cada infraestrutura destruída, ecoa a pergunta sobre a complacência e a
inação global. Como é possível que o mundo assista a uma tragédia de tamanha magnitude,
um genocídio que agora já começa ser classificado como holocausto, e a reação
da comunidade internacional seja tão lenta e, certamente, insuficiente?
A violência indiscriminada em Gaza tem sido
amplamente documentada por diversas fontes, incluindo a Organização das Nações
Unidas (ONU), organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a
Human Rights Watch, e agências de notícias globais. Relatórios da ONU e de
outras entidades independentes apontam para uma série de violações de
convenções internacionais por parte de Israel, incluindo, mas não se limitando
a:
·
As Convenções de Genebra – um conjunto
de tratados internacionais que formam a base do direito
internacional humanitário (DIH) e estabelecem padrões
internacionais para o tratamento humanitário em tempo de guerra: civis, inclusive
mulheres e crianças, hospitais, escolas e infraestruturas essenciais, que têm
sido alvo de ataques repetidos, contrariando o direito internacional
humanitário que os classifica como locais protegidos. O assédio a equipes
médicas e a destruição de unidades de saúde, bem como o uso desproporcional da
força e a punição coletiva de uma população inteira (impedida de acessar
alimento e água), são pontos de gravíssimos, com instalações da ONU e as forças
de paz, foram atacados, desrespeitando abertamente seu status de proteção legal
internacional.
·
Resoluções do Conselho de Segurança da ONU: Israel tem
sido criticado por não cumprir inúmeras resoluções do Conselho de Segurança que
exigem, entre outras coisas, o fim da ocupação de territórios palestinos e a
proteção de civis.
·
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional: Que define crimes de guerra, crimes contra a
humanidade e genocídio. Por isso, o Procurador do Tribunal Penal Internacional
(TPI) pediu mandados de prisão tanto para os lideres do Hamas (Yahya
Sinwar, Mohammed Deif, Ismail Haniyeh) quanto para o primeiro-ministro
israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Yoav Gallant, acusando-os
de crimes de guerra e crimes contra a humanidade (não por genocídio) em
Gaza. Mas vale ressaltar que a África do
Sul iniciou o caso de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça
(CIJ) em dezembro de 2023 e vários outros países se manifestaram e alguns se
somaram formalmente ao processo, ou expressaram a intenção de fazê-lo.
Enquanto as leis e o sistema multilateral (cujas
decisões passam pelos EUA e alguns poucos países europeus), não funcionam a
contento, nem na velocidade necessária, a situação das mulheres e meninas em
Gaza segue desesperadora, ultrapassando os limites do suportável. Além do
trauma constante da guerra, da perda de seus lares e entes queridos, elas
enfrentam desafios adicionais devastadores. A falta de acesso a cuidados de
saúde básicos, incluindo serviços de saúde materna e reprodutiva, é crítica;
muitas dão à luz em condições subumanas, sem anestesia, higiene ou
acompanhamento adequado, com riscos imensos para mães e bebês. A escassez de
água potável, alimentos e produtos de higiene menstrual nas superlotadas áreas
de abrigo degrada a dignidade e a saúde feminina, expondo-as a doenças e
humilhações. A violência sexual, que tende a aumentar em contextos de crise e
deslocamento, também é parte do cotidiano que mulheres e meninas enfrentam, à
medida que a proteção se torna escassa em um cenário de colapso social, e vem
sendo denunciadas pela ONU Mulheres e pelo OCHA (Escritório das Nações
Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários).
Já agências como a UNICEF e a UNRWA detalham o
impacto devastador do conflito sobre as pessoas mais vulneráveis. A visão,
expressa por autoridades israelenses, de que uma criança palestina em Gaza é um
futuro membro do Hamas, é uma desumanização que alimenta a violência e impede
qualquer perspectiva de paz duradoura. É uma lógica perversa que justifica a
morte indiscriminada e a negação da infância. Que justifica o brilho dos olhos que
se apagam, a terra que agora devora a vida que não brota, a brincadeira que
cessa, a risada que se esgota, e a inocência que morre, junto com todos os
juramentos e jurisdições internacionais que Israel enterra.
Um Despertar Tardio, mas Urgente – Importante
registrar que a pressão sobre o Primeiro-Ministro Netanyahu não vem apenas da
comunidade internacional e da sociedade civil global, mas também de dentro de
Israel. São muitos os judeus não sionistas e ativistas pela paz têm se
manifestado veementemente contra as políticas do governo, condenando as ações
em Gaza e exigindo um cessar-fogo e uma solução diplomática que respeite os
direitos palestinos. Essas vozes, representam uma importante frente de oposição
interna às políticas da direita israelense, provando que a complexidade do
conflito transcende simplificações. Nesse cenário de dor e polarização, é crucial
reafirmar que a crítica às ações do Estado de Israel e a defesa do povo
palestino jamais devem ser confundidas com o ódio ao povo judeu que no mundo
inteiro organiza protestos sob os gritos de “não em meu nome”.
Na Europa, a demora em adotar uma posição mais firme e unificada em relação a Israel pode ser atribuída a uma complexa teia de fatores. A memória do Holocausto e o consequente compromisso com a segurança de Israel desempenham um papel significativo na política externa de muitos países europeus, gerando uma reticência histórica em criticar abertamente o Estado judeu, além dos fortes laços transatlânticos com os Estados Unidos e dos interesses econômicos, que sempre falam mais fortes. Porque também o que fica óbvio que a “inação” da comunidade internacional diante de um quadro tão explícito de violações é uma opção e também uma ação, um sintoma alarmante de um sistema global que ainda opera sob as sombras do neocolonialismo no qual países ricos, historicamente envolvidos na desestabilização de regiões e na extração de riquezas, continuam a exercer sua dominação, como se fossem donos do mundo.
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Fonte: clica aqui |
Não é à toa que se observa nos últimos meses uma
crescente onda de indignação. Os protestos contra Israel são um fenômeno global
e difundido, ocorrendo em dezenas de países (e em vários
estados dos EUA), levando milhões de pessoas às ruas e mostrando a
importância da pressão popular, o que fez crescer a lista de países que estão rompendo
relações diplomáticas.
Apesar disso, confesso que foi com uma ponta
de amargor que por longas semanas, depois do “ápice” do ataque do Hamas,
acompanhei os noticiários nos principais veículos nacionais, sempre tão ávidos
por dramas, apenas para constatar que o genocídio em curso foi
marginalizado ou tratado superficialmente, enquanto a urgência do momento se diluía entre as
complexas tramas da política doméstica e as muito mais excitantes batalhas
tarifárias de Donald Trump. E eu pensava nas Fatimas, em suas crianças, nas
minhas crianças, no que dizer, como explicar que deixamos tantas atrocidades
irem tão longe, impunemente.
Essas ultimas semanas, no Brasil, finalmente o
debate sobre Gaza, começa a ganhar maior espaço nas mídias, entre artistas e na
sociedade civil organizada. Embora o governo Lula tenha historicamente mantido
uma postura diplomática que busca o equilíbrio e a solução de dois Estados, é
recente a pressão das ruas, a mobilização de artistas e trabalhadores. O despertar, embora tardio, finalmente
floresce, e a luz da consciência parece, enfim, romper o véu sobre Gaza.
Contudo, é fundamental reconhecer que o mero ecoar da tragédia nas manchetes,
por mais essencial que seja, revela-se insuficiente. Tampouco basta que a mais
alta voz da nação, ainda que corajosa desde o seu diagnóstico inicial, se
limite a reiterar a dura palavra "genocídio", a condenação verbal,
desacompanhada de atos consequentes, corre o risco de esvaziar-se em mero
lamento retórico. A urgência do horror, em sua inegável dimensão, aponta para
uma medida que transcende o discurso e ecoa o imperativo da coerência com as
leis internacionais, com o anti-racismo e com a nossa moral: o rompimento das
relações diplomáticas com Israel é urgente.
Eu
espero que as publicações futuras, da Laudelinas, possam já registrar a
concretização de tal gesto, um verdadeiro marco de responsabilidade do Brasil
em face da barbárie. Que possa falar sobre o fim do massacre, de um povo
palestino que se prepara para, dos escombros, reerguer-se outra vez. Mas até lá
continuo pensando em mulheres como Fátima, para quem, em casos tão extremos de
dor e desumanização, a esperança vira pó e entre escombros a morte, outrora
um medo, um frio distante, talvez passe a ser desejada, como um porto, uma
ilusão. Eu sei e sinto que a Fatima que imaginei, ao escrever esse texto, não
terá mais um amanhecer. Hoje dispararam até contra as pessoas que buscavam
comida, sei que muitas Fátimas tombaram, junto com seus filhos. E, embora a impotência me amarre, espero que as
palavras encontrem seu caminho, que a cada
criança assassinada, a cada mãe que perde o olhar, a indignação transcenda esse
lamento. Não basta assistir, não basta saber, não basta dar like em redes
sociais, é urgente sair em busca da humanidade perdida. Enquanto a esperança se
desfaz em pó sob um céu que só conhece o brilho de bombas, o que restará de
nós, afinal, se escolhemos desviar o olhar e calar?
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Alessandra Nilo é uma jornalista feminista, especialista em Comunicação e Saúde, pós-graduada em Diplomacia. Diretora de Relações Externas da IPPF ACRO e co-fundadora da ONG Gestos. É editora do Relatório Luz (Agenda 2030) e foi Sherpa do C20 em 2024, grupo que monitora o G20. Sua trajetória é marcada por prêmios: Monique Rodrigues (2018) por direitos LGBTI, e defensora de DH pelo TRT em 2019. Em 2025, foi honrada com o Prêmio Tacaruna Mulher na Categoria Ação Social. Alessandra é também cineasta premiada e apaixonada por política.